quinta-feira, 25 de abril de 2013

Evangelho segundo José

José deu início a uma espécie de palestra. Nem parecia incipiente nesses assuntos, a fonte jorrava a gorgolejos estentóreos, modulava sua voz segundo regras  inconscientes  da mais fina oratória. Semeou a dúvida nas entranhas do globo. Fez apologia da hesitação e da vanidade de todo e qualquer ato. Engrandeceu a inutilidade como principal atributo do homem. Impregnou a matéria com incertezas. Esclareceu à turba que todos estão fadados ao fracasso, e que melhor seria não ter nascido. Disse que a infelicidade e a desgraça estão inscritas de modo indelével nos abismos de cada célula humana; que é impossível conhecer a si próprio, pois estamos envoltos em brumosos abismos e dobras que são inextricáveis. Amor e felicidade são palavras vazias de significado, e o homem é um cadáver que se arrasta sob o sol. Por fim, rogou que construíssemos templos à Ruína, e que entoássemos ladainhas à glória dos natimortos.

(Meu amigo André, Desgraça)

Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia

 E o que a senhora acha?  gritou Razumíkhin, levantando ainda mais a voz.  A senhora acha que estou a favor de que eles mintam? Absurdo! Eu gosto quando mentem! A mentira é o único privilégio humano perante todos os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano. Nunca se chegou a nenhuma verdade sem antes haver mentido de antemão quatorze, e talvez até cento e quatorze vezes, e isso é uma espécie de honra; mas nós não somos capazes nem de mentir com inteligência! Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo. Mentir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no primeiro caso, és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro! A verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos; exemplos houve. E hoje, o que nós fazemos? Todos nós, todos sem exceção, no que se refere à ciência, ao desenvolvimento, ao pensamento, aos inventos, aos ideais, aos desejos, ao liberalismo, à razão, à experiência e tudo, tudo, tudo, tudo, ainda estamos na primeira classe preparatória do colégio! Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia  e nos impregnamos! Não é verdade? Não é verdade o que estou falando?  gritava Razumíkhin, sacudindo e apertando as mãos de ambas senhoras.  Não é verdade?

(Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo)