sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Ao amigo Heinrich

O que chamam verdade é um erro insuficientemente vivido, ainda não esvaziado, mas que não demorará a envelhecer, um erro novo, e que espera comprometer sua novidade.

(Emil Cioran)

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Extremismos febris

O coletivo casuísta que tanto condenas
Da convenção é tão passivo
Quanto és do ceticismo.

Cartomancias não me cansam
Como faz a tua ciência barata
Prepotente e transitória.

Tua contramarcha convicta
É tão conjectura quanto senso comum:
Igualmente inerte.

Minha censura ao comodismo
Difere clara da tua
Que de contundente, recua.

Na circunstância do desconforto
Há pouca força para refutar.
A caquexia sobrepõe o senso crítico.

(Letícia Palazzo, brilhantemente)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

(José Régio, Poemas de Deus e do Diabo)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cascata

A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!

Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?

A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?

Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de ideias nossas no mais direto olhá-las!

Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa?

Lancei-vos, rindo, esta ideia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?). E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de mistério...

Acordo para saber que existo...

Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.

(Fernando Pessoa, Livro do desassossego)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Não olho para as coisas...

Não olho para as coisas.
Definitivamente não olho para as coisas.
Quando olho para as coisas,
Olham para as coisas por meio dos meus olhos.

Meus óculos são grossos!
Se vejo injustiça, é um mártir qualquer que a chora.
Se contemplo a beleza, é um esteta que a examina.
Se observo um fenômeno, é um cientista que o explica.
Se procuro liberdade, é um político que aponta a direção.

Minhas palavras são externamente articuladas!
Digo "Estou feliz!" porque me disseram o que é felicidade.
Digo "Tenho pena!" por ter lido sobre a empatia.
Digo "Adeus!" seguindo regras de sociabilidade.
Digo "Te amo!" em resposta ao amor que recebo.

Sempre os outros...
Não sou a soma de experiências.
Sou, antes, anulado por elas.

Eu, substrato vazio de conteúdo,
Receptáculo universal de alteridades.
Eu, amontoado enciclopédico de argumentos,
Disposição organizada de alheios.

Eis o paradoxo desconcertante:
O que tenho de original me é emprestado de fora,
E minha introspecção se dá em terceira pessoa.
Tirando isso, eu sou.

(Eu mesmo)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Atuaram...

Atuaram,
Insetos que são aves a gracejar,
Gatos que são porcos a chafurdar,
Flores que são estrume a não cheirar.

Atuam,
Lesmas a voar,
Diamantes a não brilhar
E até mesmo folhas a não cair.

Atua,
A fumaça que é calma,
A doença que é a alma,
A solidão que é carinho.

Atuo eu, atuas tu, atuam todos.

E que péssimos atores somos nós.

(Meu amigo Eric, com a ajuda do Berim, o CD)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Penetrar no fundo da realidade...

Penetrar no fundo da realidade
E encontrar ali o que é...

E se a realidade não tiver fundo?
E se for rasa?
Melhor boiar na superfície do rio
Sem dificuldades para respirar
Que usar um respirador
E imergir no que, para nós,
Não é natural.

Ilumina, luz natural!

(Eu mesmo)

Numa pausa breve e merecida dos afazeres...

Numa pausa breve e merecida dos afazeres
Das coisas só dos homens,
Recosto-me e fecho os olhos cansados.

Vejo claramente, embora de olhos fechados,
Em alguma extensão espaço-temporal do Universo
(Não sei se vejo o real ou uma ilusão do real, mas isso de modo algum tem importância)
Um simulacro de gente que volta sua atenção para algo desagradável,
Mas que (dura pena!) tem que ser feito.

"Tem que estar pronto até tantas horas",
Disseram-lhe mais cedo.
"Tem que ser feito deste modo",
Ouviu lhe ordenarem.
Sabe, com uma evidência que o cientista apenas sonha em encontrar,
Que o como fazer e o quando entregar não são adequados àquilo que faz.
Traz consigo esse conhecimento há muito tempo...
Realmente há bastante tempo!

Protestar?
Valerá a pena?
Dará resultado?
Será que...?

Levanta-se, lança-se à sorte.
Ouvem-no e riem, riem desmedidamente.
Quão cômica pode ser a insignificância!

Abro os olhos.
Sensações comuns diversas me enchem a vida.
Pego meu lápis, abro o caderno de registros
E preencho o formulário de admissão do Sr. Vasconcelos.

As nuvens enegrecem.
Choverá hoje!
Amanhã, talvez...

(Eu mesmo)