sábado, 24 de fevereiro de 2018

As benevolentes

Os cadáveres empilhavam-se em uma esplanada, em pequenos montes desordenados, espalhados aqui e ali. Um forte zumbido, persistente, dominava o ambiente: milhares de moscas gordas e azuis voejavam sobre corpos, poças de sangue, matérias fecais. Minhas botas grudavam no chão. Os mortos já estavam inchando, contemplei sua pele verde e amarelada, os rostos disformes, como os de um homem com os olhos pisados. O cheiro era repulsivo; e aquele cheiro, eu sabia, era o início e o fim de tudo, a própria significação da nossa existência. Esse pensamento me revirava o estômago. Pequenos grupos de soldados da Wehrmacht munidos de máscaras de gás tentavam desfazer as pilhas para alinhar os corpos; um deles puxara um braço, que se soltou e ficou em sua mão; ele o atirou com um gesto cansado em cima de outro monte. "Há mais de mil", disse-me o oficial da Abwehr, quase murmurando. Todos os ucranianos e poloneses que eles mantinham aprisionados desde a invasão. Encontramos mulheres, até mesmo crianças. Eu queria fechar os olhos, ou tapá-los com as mãos, e ao mesmo tempo queria olhar, olhar tudo até me embriagar e tentar compreender pelo olhar aquela coisa incompreensível, ali, diante de mim, aquele vazio para o pensamento humano. Desamparado, voltei-me para o oficial da Abwehr: "Leu Platão?" Ele me fitou, pasmo: "Quê?"  "Não, nada." Dei meia volta e saí dali.

(Jonathan Littell, As benevolentes

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Fundamentação prática

Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. Já aludi a isto há pouco. Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; e isto é de fato o mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apoie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar. E assim chegamos de novo às leis da natureza. E qual é, afinal, o resultado? Exatamente o mesmo. Lembrai-vos: ainda há pouco falei de vingança. (Provavelmente não atentastes nisso.) Já foi dito: o homem se vinga porque acredita que é justo. Quer dizer que ele encontrou a causa primeira, o fundamento: a justiça. Isto é, como ele está tranquilizado por todos os lados, vinga-se calmamente e com êxito, convicto de que pratica uma ação honesta e justa.

(Fiódor Dostoiévski, Memórias de subsolo)

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A respeito da Verdade

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita da sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.

Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um deles me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

(Fernando Pessoa, Livro do desassossego)