sexta-feira, 31 de maio de 2013

A doença


Ele esteve hospitalizado durante todo o final da quaresma e o final da Semana Santa. Já convalescendo, lembrou-se dos sonhos que tivera, quando ainda estava com febre e delirando. Doente, sonhou que o mundo todo estava condenado ao sacrifício de uma peste terrível, inédita e inaudita, que marchava das profundezas da Ásia sobre a Europa. Todos deveriam morrer, salvo alguns escolhidos, pouquíssimos. Apareceram umas novas triquinas, seres microscópicos, que se instalavam nos corpos das pessoas. Mas esses seres eram espíritos dotados de inteligência e vontade. As pessoas que as recebiam tornavam-se no mesmo instante endemoninhadas e loucas. Mas nunca, nunca as pessoas haviam se considerado tão inteligentes e inabaláveis na verdade como se consideravam os contaminados. Jamais consideraram nada mais inabalável que as suas sentenças, as suas conclusões científicas, as suas convicções morais e crenças. Povoados inteiros, cidades inteiras e povos eram contagiados e enlouqueciam. Todos estavam alarmados e não se entendiam, cada um pensava que nele e só nele se resumia a verdade, e atormentava-se ao olhar para os outros, batia no peito, chorava e torcia os braços. Não sabiam quem e como julgar, não conseguiam combinar o que chamar de mal, o que de bem. Não sabiam a quem acusar, a quem absolver. As pessoas se matavam umas às outras tomadas de alguma raiva absurda. Preparavam-se com exércitos inteiros para marchar umas contra as outras, mas os exércitos, já em marcha, começavam subitamente a se despedaçar, perdiam fileiras, os guerreiros se atiravam uns contra os outros, furavam-se e cortavam-se, mordiam-se e comiam uns aos outros. Nas cidades o alarme soava o dia inteiro: convocavam todos, mas quem e para que convocavam ninguém sabia, e todos andavam alarmados. Abandonaram os ofícios mais habituais, porque qualquer um sugeria as suas ideias, as suas correções, e não conseguiam chegar a um acordo; a agricultura parou. Aqui e ali as pessoas fugiam aos montes, combinavam atuar juntas em alguma coisa, faziam juramentos de não se separarem – mas no mesmo instante começavam algo inteiramente diferente do que acabavam de combinar, passavam a acusar-se mutuamente, brigavam e matavam-se com arma branca. Começaram os incêndios, começou a fome. Tudo e todos morriam. A peste crescia e avançava cada vez mais. Em todo o mundo apenas alguns indivíduos conseguiam salvar-se, eram os puros e escolhidos, destinados a iniciar uma nova espécie de gente e uma nova vida, a renovar e purificar a terra, mas ninguém via essas pessoas em parte alguma, ninguém ouvia as suas palavras e as suas vozes.

(Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo)

Deus é um industrial desleixado

“Entenda, as pessoas religiosas... a maioria delas... pensam realmente que esse planeta seja uma experiência. É a isso que se resumem suas crenças. Sempre há um ou outro deus se metendo nas coisas, andando com mulheres de mercadores, dando tábuas em montanhas, ordenando aos pais que mutilem os filhos, ensinando às pessoas as palavras que podem dizer e as que não podem, fazendo as pessoas se sentirem culpadas por gozarem a vida, e assim por diante. Por que os deuses não deixam as coisas como estão? Todo esse intervencionismo cheira a incompetência. Se Deus não queria que a mulher de Ló olhasse para trás, por que não a fez obediente, de modo que fizesse o que lhe disse o marido? Ou, se Deus não tivesse feito Ló tão bobo, talvez a mulher dele lhe prestasse mais atenção. Se Deus é onipotente e onisciente, por que não fez logo o universo de maneira a ser como ele quer? Por que está sempre consertando e se queixando? Não, há uma coisa que a Bíblia deixa claro: o Deus bíblico é um industrial desleixado. Como não é bom de projeto, não é bom de execução. Se houvesse concorrência, ele estaria falido. É por isso que não acredito que sejamos uma experiência. Poderia haver uma porção de planetas experimentais no universo, lugares onde deuses aprendizes põem à prova suas habilidades. É uma vergonha que Rankin e Joss não tenham nascido num desses planetas. Mas neste planeta...” Mais uma vez ele apontou para a janela. “...não há nenhuma microinvenção. Os deuses não dão uma passadinha aqui para consertar as coisas quando metemos os pés pelas mãos. Basta olhar a história da humanidade para ficar claro que sempre vivemos por nossa própria conta.”

(Carl Sagan, Contato)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Definição

O fracasso é a conditio sine qua non do ser humano.

(Eu mesmo, com a ajuda do meu amigo Eric)