sábado, 18 de agosto de 2012

O trabalho é atividade da menoridade

Não só de fato, mas também conceitualmente, demonstra-se a identidade entre trabalho e menoridade. Até poucos séculos atrás, os homens tinham consciência do nexo entre trabalho e coerção social. Na maioria das línguas europeias, o termo "trabalho" relaciona-se originalmente apenas à atividade de uma "pessoa menor", do dependente, do servo ou do escravo. Nos países de língua germânica, a palavra Arbeit significa trabalho árduo de uma criança órfã e, por isso, tornada serva. No latim, laborare significava algo como o "cambalear do corpo sob uma carga pesada", e em geral era usado para designar o sofrimento e o mau trato do escravo. As palavras latinas travail, trabajo etc. derivam-se do latim tripalium, uma espécie de jugo utilizado para a tortura de escravos e outros não livres. [...] Portanto, "trabalho" - também pela sua origem etimológica - não é sinônimo de atividade humana autodeterminada, mas remete a um destino social infeliz. É a atividade daqueles que perderam sua liberdade. A ampliação do trabalho a todos os membros da sociedade é, por isso, nada mais que a generalização da dependência servil, e sua adoração moderna consiste apenas na elevação quase religiosa desse estado.

(Grupo Krisis, Manifesto contra o trabalho)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A Descartes

Seja o que for que esteja no centro do mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção da realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade,
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim - nos momentos em que julgo que efetivamente existe -
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo de realidade?
Se é mais certo eu sentir
Do que existir a coisa que sinto -
Para que sinto
E para que surge essa coisa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Coisa por coisa, o mundo é mais certo.

Mas por que me interrogo, se não porque estou doente?

Nos dias certos, nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim,
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.
Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?

(Fernando Pessoa)

Somos uma farsa

O fato mais verdadeiro e talvez o mais lamentável da existência humana: somos uma farsa. Mentimos desde o nascimento até o dia de nossa morte. Mentimos pra quem amamos, pra quem desconhecemos, pra quem ignoramos,  pra quem simplesmente desprezamos, por fim, mentimos pra nós mesmos. Nós nos deleitamos diariamente com todo o tipo de mentira, desde a mais pequena àquela que envolve tudo e todos que respiram. A mentira da felicidade, quem nunca a saboreou? A mentira da verdade, quem nunca a perseguiu? A mentira do amor, quem nunca ? Hoje vejo claramente que somos mesmo diferentes de todos os outros animais, afinal sabemos mentir sem qualquer rubor na face, naturalmente. Com isso triunfamos, construímos arranha-céus, aviões, bombas: a mentira do progresso. A custo de mentiras vivemos o progresso, e pra quê? Eu tenho me perguntado sinceramente, e pra quê? O homem se engana sem o mínimo intervalo; não cessa; nunca para. Eu minto, vivo de farsas, meus porquês são fraudulentos: carreira, carro, dinheiro, cerveja à vontade, conhecer o Japão e chegar até lá em apenas uma mísera hora. A vida humana realmente merece ser distinguida da vida do meu cachorro, ela insiste em fingir razões, motivos, etc; enquanto meu cachorro simplesmente vive, respira, esteja só ou acompanhado. Eu vivo porque isso, porque aquilo, por quê? Por que eu vivo de fato? A resposta é simples, não existe. Eu não levo e nunca levei essa pergunta a sério, dói demais. Eu sou uma farsa justificada: sei que minto e isso me incomoda, mas nada tenho a fazer quanto a esse assunto.

(Meu amigo Arthur)