quarta-feira, 29 de julho de 2015

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

(Carlos Drummond de Andrade)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Penetrar no fundo da realidade...

Penetrar no fundo da realidade
E encontrar ali o que é...

E se a realidade não tiver fundo?
E se for rasa?
Melhor boiar na superfície do rio
Sem dificuldades para respirar
Que usar um respirador
E imergir no que, para nós,
Não é natural.

Ilumina, luz natural!

(Eu mesmo)

Numa pausa breve e merecida dos afazeres...

Numa pausa breve e merecida dos afazeres
Das coisas só dos homens,
Recosto-me e fecho os olhos cansados.

Vejo claramente, embora de olhos fechados,
Em alguma extensão espaço-temporal do Universo
(Não sei se vejo o real ou uma ilusão do real, mas isso de modo algum tem importância)
Um simulacro de gente que volta sua atenção para algo desagradável,
Mas que (dura pena!) tem que ser feito.

"Tem que estar pronto até tantas horas",
Disseram-lhe mais cedo.
"Tem que ser feito deste modo",
Ouviu lhe ordenarem.
Sabe, com uma evidência que o cientista apenas sonha em encontrar,
Que o como fazer e o quando entregar não são adequados àquilo que faz.
Traz consigo esse conhecimento há muito tempo...
Realmente há bastante tempo!

Protestar?
Valerá a pena?
Dará resultado?
Será que...?

Levanta-se, lança-se à sorte.
Ouvem-no e riem, riem desmedidamente.
Quão cômica pode ser a insignificância!

Abro os olhos.
Sensações comuns diversas me enchem a vida.
Pego meu lápis, abro o caderno de registros
E preencho o formulário de admissão do Sr. Vasconcelos.

As nuvens enegrecem.
Choverá hoje!
Amanhã, talvez...

(Eu mesmo)