terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A razão é um fato cultural

Tese: A razão é um fato cultural. Assim como vários animais – os mamíferos, por exemplo – extrapolam o instinto de mera sobrevivência e promovem atividades culturais, o homem, por sua vez, ao extrapolar seus instintos inventou a razão. A razão, embora vários filósofos defendam o oposto, não é um órgão que tenha regras determinadas, muito menos regras determinadas a priori. Ela surge em última instância, da convivência social entre os homens, e tem, portanto, na cultura todo seu alicerce.

1ª consequência: Aqueles que julgam que a razão é um órgão com funções e regras determinadas se comportam como se a raça humana não fosse completamente animal. A razão, embora eles não o admitam abertamente, confere o aval para justificar qualquer coisa - isso Camus bem nos alertou -, e serve inclusive para justificar uma pretensa superioridade. Não somos meros animais. Somos animais racionais. Mas o que isso quer de fato dizer? A resposta parece ser sempre metafísica, que é, diga-se de passagem, mais um artifício racional.

1ª observação: A ironia disso tudo é que o animal humano criou um fato cultural que tomou historicamente a forma de razão, mas acha que o próprio fato cultural extrapola sua animalidade. O homem se torna assim, com a ajuda da razão, justificadamente superior aos outros animais. E o pior, não se torna culturalmente superior, mas sim ontologicamente superior. Mas o que é uma ontologia senão uma justificativa racional do mundo? O homem pensa que não é totalmente animal. E esse é o tribunal da razão: o pensamento, o juízo.

2ª consequência: Os partidários da razão fazem constantemente uma ciência que eles chamam de metafísica. Fazem metafísica da razão. Fazem crítica da razão. Alguns chegam ao absurdo de fazer crítica da razão pura, o que é obviamente um gênero mais “refinado” de metafísica. Quais os limites da razão pura? A lógica é regra necessária da razão? Estes são exemplos de suas preocupações. Estas são suas ilusões.

2ª observação: O que é essa faculdade, esse órgão, nomeado de razão? Essa pergunta nunca foi respondida satisfatoriamente, talvez porque tenha nela, a razão, a sua própria origem. A pergunta correta talvez fosse: quando surge a cultura da razão entre os homens?

3ª consequência: A razão, como já disse, é fruto do convívio social, é fruto da cultura. Porém, a crença cega na razão, gera nos homens algo pouco detectável nos outros animais: a insociabilidade aguda, o extremo egoísmo, a capacidade de fundamentar sua própria tolice.

3ª observação: Isso gera problemas angustiantes aos outros animais, humanos ou não, como a fome, a guerra, o sofrimento.

(Meu amigo Arthur, inconsistenciacontemporanea.blogspot.com)

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Oremos!

Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.

(Emil Cioran)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Sobre a verdade e a mentira no sentido extramoral

No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal, mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer. Esta é a fabula que se poderia inventar, sem com isso chegar a iluminar suficientemente o aspecto lamentável, frágil e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa exceção que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Eternidades passaram sem que ele existisse; e se ele desaparecesse novamente, nada se teria passado; pois não há para tal intelecto uma missão que ultrapasse o quadro de uma vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor e criador o trata com tanta paixão, como se ele fosse o eixo em torno do qual girasse o mundo. Se pudéssemos entender a mosca, perceberíamos que ela navega no ar animada por essa mesma paixão e sentindo em si que voar é o centro do mundo. Nada há de tão desprezível e de tão insignificante na natureza que não transborde como um odre ao menor sopro dessa força do conhecer, e assim como todo carregador quer também ter o seu admirador, o homem mais arrogante, o filósofo, imagina ter também os olhos do universo focalizados, como um telescópio, sobre suas obras e seus pensamentos. É admirável que o intelecto seja responsável por esse tipo de situação, ele a quem todavia não foi dado senão servir precisamente como auxiliar dos seres mais desfavorecidos, mais vulneráveis e mais efêmeros, a fim de mantê-los na vida pelo espaço de um minuto de existência da qual eles teriam todo o direito de fugir..., não fosse esta ajuda recebida. Este orgulho ligado ao conhecimento e à percepção, névoa que cega o olhar e os sentidos do homem, engana-os sobre o valor da existência, exatamente quando vem acompanhada da avaliação mais lisonjeira possível com relação ao conhecimento. O seu efeito mais comum é a ilusão; mas seus efeitos mais particulares implicam também qualquer coisa da mesma ordem. O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial de suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conservação dos indivíduos mais fracos e menos robustos, na medida em que lhes é impossível enfrentar uma luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais carnívoros. É no homem que esta arte de dissimulação atinge o seu ponto culminante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o fato de desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção, o fato de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o gracejo perpétuo que em todo lugar goza unicamente como o amor da vaidade, são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro. Eles estão profundamente mergulhados nas ilusões e nos sonhos, seu olhar somente desliza sobre a superfície das coisas e vê apenas as formas, sua percepção não leva de maneira nenhuma à verdade, mas se limita a receber as excitações e a andar como que às cegas no dorso das coisas. Além disso, durante a vida toda, o homem se deixa enganar à noite pelos sonhos, sem que jamais o seu sentido moral procure impedi-lo disso, embora deva haver homens que, por força da vontade, tiveram sucesso em se livrar do ronco. Mas o que sabe o homem, na verdade, de si mesmo? E ainda, seria ele sequer capaz de se perceber a si próprio, totalmente de boa-fé, como se estivesse exposto numa vitrine iluminada? A natureza não lhe dissimula a maior parte das coisas, mesmo no que concerne ao seu próprio corpo, a fim de mantê-lo prisioneiro de uma consciência soberba e enganadora, afastado das tortuosidades dos intestinos, afastado do curso precipitado do sangue nas veias e do complexo jogo de vibrações das fibras? Ela atirou fora a chave; e infeliz da curiosidade fatal que chegar um dia a entrever por uma fresta o que há fora desta cela que é a consciência e aquilo sobre o que ela está assentada, e descobrir então que o homem repousa, a despeito da sua ignorância, sobre um fundo impiedoso, ávido, insaciável e mortífero, agarrado a seus sonhos assim como ao dorso de um tigre. Nessas condições, haveria no mundo um lugar de onde pudesse surgir o instinto de verdade? No estado de natureza, na medida em que o indivíduo quer conservar-se diante dos outros indivíduos, ele não utiliza sua inteligência o mais das vezes senão com fins de dissimulação. Mas, na medida em que o homem, ao mesmo tempo por necessidade e por tédio, quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é concluir a paz e, de acordo com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o aspecto mais brutal do bellum omnium contra omnes desapareça do seu mundo. Ora, este tratado de paz fornece algo como primeiro passo em vista de tal enigmático instinto de verdade.

(Friedrich Nietzsche)

sexta-feira, 31 de maio de 2013

A doença


Ele esteve hospitalizado durante todo o final da quaresma e o final da Semana Santa. Já convalescendo, lembrou-se dos sonhos que tivera, quando ainda estava com febre e delirando. Doente, sonhou que o mundo todo estava condenado ao sacrifício de uma peste terrível, inédita e inaudita, que marchava das profundezas da Ásia sobre a Europa. Todos deveriam morrer, salvo alguns escolhidos, pouquíssimos. Apareceram umas novas triquinas, seres microscópicos, que se instalavam nos corpos das pessoas. Mas esses seres eram espíritos dotados de inteligência e vontade. As pessoas que as recebiam tornavam-se no mesmo instante endemoninhadas e loucas. Mas nunca, nunca as pessoas haviam se considerado tão inteligentes e inabaláveis na verdade como se consideravam os contaminados. Jamais consideraram nada mais inabalável que as suas sentenças, as suas conclusões científicas, as suas convicções morais e crenças. Povoados inteiros, cidades inteiras e povos eram contagiados e enlouqueciam. Todos estavam alarmados e não se entendiam, cada um pensava que nele e só nele se resumia a verdade, e atormentava-se ao olhar para os outros, batia no peito, chorava e torcia os braços. Não sabiam quem e como julgar, não conseguiam combinar o que chamar de mal, o que de bem. Não sabiam a quem acusar, a quem absolver. As pessoas se matavam umas às outras tomadas de alguma raiva absurda. Preparavam-se com exércitos inteiros para marchar umas contra as outras, mas os exércitos, já em marcha, começavam subitamente a se despedaçar, perdiam fileiras, os guerreiros se atiravam uns contra os outros, furavam-se e cortavam-se, mordiam-se e comiam uns aos outros. Nas cidades o alarme soava o dia inteiro: convocavam todos, mas quem e para que convocavam ninguém sabia, e todos andavam alarmados. Abandonaram os ofícios mais habituais, porque qualquer um sugeria as suas ideias, as suas correções, e não conseguiam chegar a um acordo; a agricultura parou. Aqui e ali as pessoas fugiam aos montes, combinavam atuar juntas em alguma coisa, faziam juramentos de não se separarem – mas no mesmo instante começavam algo inteiramente diferente do que acabavam de combinar, passavam a acusar-se mutuamente, brigavam e matavam-se com arma branca. Começaram os incêndios, começou a fome. Tudo e todos morriam. A peste crescia e avançava cada vez mais. Em todo o mundo apenas alguns indivíduos conseguiam salvar-se, eram os puros e escolhidos, destinados a iniciar uma nova espécie de gente e uma nova vida, a renovar e purificar a terra, mas ninguém via essas pessoas em parte alguma, ninguém ouvia as suas palavras e as suas vozes.

(Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo)

Deus é um industrial desleixado

“Entenda, as pessoas religiosas... a maioria delas... pensam realmente que esse planeta seja uma experiência. É a isso que se resumem suas crenças. Sempre há um ou outro deus se metendo nas coisas, andando com mulheres de mercadores, dando tábuas em montanhas, ordenando aos pais que mutilem os filhos, ensinando às pessoas as palavras que podem dizer e as que não podem, fazendo as pessoas se sentirem culpadas por gozarem a vida, e assim por diante. Por que os deuses não deixam as coisas como estão? Todo esse intervencionismo cheira a incompetência. Se Deus não queria que a mulher de Ló olhasse para trás, por que não a fez obediente, de modo que fizesse o que lhe disse o marido? Ou, se Deus não tivesse feito Ló tão bobo, talvez a mulher dele lhe prestasse mais atenção. Se Deus é onipotente e onisciente, por que não fez logo o universo de maneira a ser como ele quer? Por que está sempre consertando e se queixando? Não, há uma coisa que a Bíblia deixa claro: o Deus bíblico é um industrial desleixado. Como não é bom de projeto, não é bom de execução. Se houvesse concorrência, ele estaria falido. É por isso que não acredito que sejamos uma experiência. Poderia haver uma porção de planetas experimentais no universo, lugares onde deuses aprendizes põem à prova suas habilidades. É uma vergonha que Rankin e Joss não tenham nascido num desses planetas. Mas neste planeta...” Mais uma vez ele apontou para a janela. “...não há nenhuma microinvenção. Os deuses não dão uma passadinha aqui para consertar as coisas quando metemos os pés pelas mãos. Basta olhar a história da humanidade para ficar claro que sempre vivemos por nossa própria conta.”

(Carl Sagan, Contato)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Definição

O fracasso é a conditio sine qua non do ser humano.

(Eu mesmo, com a ajuda do meu amigo Eric)

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Evangelho segundo José

José deu início a uma espécie de palestra. Nem parecia incipiente nesses assuntos, a fonte jorrava a gorgolejos estentóreos, modulava sua voz segundo regras  inconscientes  da mais fina oratória. Semeou a dúvida nas entranhas do globo. Fez apologia da hesitação e da vanidade de todo e qualquer ato. Engrandeceu a inutilidade como principal atributo do homem. Impregnou a matéria com incertezas. Esclareceu à turba que todos estão fadados ao fracasso, e que melhor seria não ter nascido. Disse que a infelicidade e a desgraça estão inscritas de modo indelével nos abismos de cada célula humana; que é impossível conhecer a si próprio, pois estamos envoltos em brumosos abismos e dobras que são inextricáveis. Amor e felicidade são palavras vazias de significado, e o homem é um cadáver que se arrasta sob o sol. Por fim, rogou que construíssemos templos à Ruína, e que entoássemos ladainhas à glória dos natimortos.

(Meu amigo André, Desgraça)

Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia

 E o que a senhora acha?  gritou Razumíkhin, levantando ainda mais a voz.  A senhora acha que estou a favor de que eles mintam? Absurdo! Eu gosto quando mentem! A mentira é o único privilégio humano perante todos os organismos. Quem mente chega à verdade! Minto, por isso sou um ser humano. Nunca se chegou a nenhuma verdade sem antes haver mentido de antemão quatorze, e talvez até cento e quatorze vezes, e isso é uma espécie de honra; mas nós não somos capazes nem de mentir com inteligência! Mente para mim, mas mente a teu modo, e então eu te dou um beijo. Mentir a seu modo é quase melhor do que falar a verdade à moda alheia; no primeiro caso, és um ser humano, no segundo, não passas de um pássaro! A verdade não foge e a vida a gente pode segurar com pregos; exemplos houve. E hoje, o que nós fazemos? Todos nós, todos sem exceção, no que se refere à ciência, ao desenvolvimento, ao pensamento, aos inventos, aos ideais, aos desejos, ao liberalismo, à razão, à experiência e tudo, tudo, tudo, tudo, ainda estamos na primeira classe preparatória do colégio! Nós nos contentamos em viver da inteligência alheia  e nos impregnamos! Não é verdade? Não é verdade o que estou falando?  gritava Razumíkhin, sacudindo e apertando as mãos de ambas senhoras.  Não é verdade?

(Fiódor Dostoiévski, Crime e castigo)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Deus não sabe o que fez

Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência. Então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio dos princípios, e, subindo-lhe à lembrança o rio de sangue e de sofrimento que do seu lado erá nascer e alagar toda a terra, clamou para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.

(José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo)

sábado, 2 de março de 2013

Inteligência é ornamento

É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e ação.

(Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil)

Imagem da condição humana

Imagine-se certo número de homens presos e todos condenados à morte, sendo uns degolados diariamente diante dos outros e os que sobram vendo sua própria condição na de seus semelhantes e se contemplando uns aos outros com tristeza e sem esperança, à espera de sua vez. Eis a imagem da condição dos homens.

(Pascal, Pensamentos)

Estética 2

Que coisa vã a pintura, que provoca a admiração pela semelhança com coisas cujos originais não admiramos!

(Pascal, Pensamentos)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Furtiva simplicidade

Entre os poucos que conseguiram de fato chegar a uma compreensão mais adequada do mundo, nenhum mostrou tanta convicção quanto Alberto Caeiro. Em sua poesia, o poeta nos revela o que o conhecimento em geral não pode suportar: não existe um fundamento oculto para as coisas. Essa conclusão é fruto inevitável de um fato evidente: as coisas são simples, o mundo é simples; nada quer dizer nada, nada esconde nada. A razão pela qual somos ensinados (condicionados) a sustentar todo um arcabouço de noções complexas, todo um aparato de falsas ideias, reside na repulsa do ser humano pela simplicidade, na difícil tarefa de assumir que nada faz sentido. São essas atitudes humanas que ilusoriamente complexificam (até a palavra é difícil) o mundo. A teologia, a filosofia e as ciências modernas só "avançam" com a finalidade de manter oculta a simplicidade; vivem para sustentar a falsidade.

(Eu mesmo)

Filosofia e prostituição

O filósofo, desiludido dos sistemas e das superstições, mas ainda perversamente nos caminhos do mundo, deveria imitar o pirronismo de trottoir que exibe a criatura menos dogmática: a prostituta. Despreendida de tudo e aberta a tudo; esposando o humor e as ideias do cliente; mudando de tom e de rosto em cada ocasião; disposta a ser triste ou alegre, permanecendo indiferente; prodigando os suspiros por interesse comercial; lançando sobre os esforços de seu vizinho sobreposto e sincero um olhar lúcido e falso, ela propõe ao espírito um modelo de comportamento que rivaliza com o dos sábios. Não ter convicções a respeito dos homens e de si mesmo: tal é o elevado ensinamento da prostituição, academia ambulante de lucidez, à margem da sociedade como a filosofia. "Tudo o que sei aprendi na escola das putas", deveria exclamar o pensador que aceita tudo e recusa tudo, quando, a exemplo delas, especializou-se no sorriso cansado, quando os homens são, para ele, apenas clientes, e as calçadas do mundo, o mercado onde vende sua amargura, como suas companheiras, seu corpo.

(Emil Cioran)

A preguiça é uma carreira

Oh, se eu não fizesse nada unicamente por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Respeitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma propriedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergunta: quem é? Resposta: um preguiçoso. Seria muito agradável ouvir isto a meu respeito. Significaria que fui definido positivamente; haveria o que dizer de mim. "Preguiçoso!" realmente é um título e uma nomeação, é uma carreira. Não brinqueis, é assim mesmo. Seria então, de direito, membro do primeiro dos clubes, e ocupar-me-ia apenas em me respeitar incessantemente. 

(Dostoiévski, Memórias de subsolo)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O arquiteto das cavernas

A teologia, a moral, a história e a experiência de cada dia nos ensinam que para alcançar o equilíbrio não há uma infinidade de segredos; há apenas um: submeter-se: "Aceitem o jugo", nos repetem, "e serão felizes; sejam algo, e estarão livres de suas penas." Realmente, tudo é ofício neste mundo: profissionais do tempo, funcionários da respiração, dignitários da esperança, um posto nos espera desde antes de nascer: nossas carreiras são preparadas nas entranhas de nossas mães. Membros de um universo oficial, devemos ocupar um lugar nele pelo mecanismo de um destino rígido, que só se relaxa a favor dos loucos; estes, pelo menos, não se veem obrigados a ter uma crença, a filiar-se a uma instituição, a sustentar uma ideia, a pretender uma empresa. Desde que a sociedade se constituiu, os que pretenderam subtrair-se a ela foram perseguidos ou achincalhados. Perdoa-se tudo, contanto que você tenha uma profissão, um subtítulo sob seu nome, um selo sobre seu nada. Ninguém tem a audácia de gritar: "Não quero fazer nada!"; se é mais indulgente com um assassino do que com um espírito liberado dos atos. Multiplicando as possibilidades de submeter-se, abdicando de sua liberdade, matando em si mesmo o vagabundo, foi assim que o homem refinou sua escravidão e submeteu-se aos fantasmas. Mesmo seus desprezos e rebeliões, só os cultivou para ser dominado por eles, servo que é de suas atitudes, de seus gestos e de seus humores. Saído das cavernas, guardou delas a superstição; era seu prisioneiro, tornou-se seu arquiteto. Perpetua sua condição primitiva com maior invenção e sutileza; mas, no fundo, aumentando ou diminuindo sua caricatura, plagia-se descaradamente. Charlatão movido por barbantes, suas contorções, suas caretas, ainda enganam.

(Emil Cioran)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Religare

Os programas religiosos televisivos, com todo seu arcabouço de curas milagrosas e promessas de riquezas, apresentam todos os atributos definitórios do ser humano: dominação, engano, hipocrisia e, sobretudo, enrolação.

(Eu mesmo)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Estética 1

Às vezes, em dias de luz perfeita e exata,
Em que as coisas têm toda a realidade que podem ter,
Pergunto a mim próprio devagar
Por que sequer atribuo eu
Beleza às coisas.

Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às coisas em troca do agrado que me dão.
Não significa nada.
Então porque digo eu das coisas: são belas?

Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,
Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens
Perante as coisas,
Perante as coisas que simplesmente existem.

Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!

(Fernando Pessoa)

À filosofia os dissidentes

Uma revolução científica corresponde ao abandono de um paradigma e adoção de um novo, não por um único cientista somente, mas pela comunidade científica relevante como um todo. À medida que um número cada vez maior de cientistas individuais, por uma série de motivos, é convertido ao novo paradigma, há um deslocamento crescente na distribuição de adesões profissionais. Para que a revolução seja bem-sucedida, este deslocamento deverá, então, difundir-se de modo a incluir a maioria da comunidade científica relevante, deixando apenas uns poucos dissidentes. Estes serão excluídos da nova comunidade científica e se refugiarão, talvez, no departamento de filosofia.

(Alan Chalmers, O que é ciência, afinal?)