quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Estética 3

[...] a beleza dos objetos de uma paisagem, que agora nos enleva, desapareceria se nos colocássemos frente a eles numa relação pessoal da qual sempre permanecêssemos conscientes. Tudo é belo apenas enquanto não nos diz respeito. A vida NUNCA é bela, mas apenas as suas imagens o são, vale dizer, no espelho transfigurador da arte ou da poesia; sobretudo na juventude, quando ainda não conhecemos a vida. Muitos jovens alcançariam grande tranquilidade caso se pudesse ajudá-los com essa intelecção.
Por que a visão da Lua cheia faz efeito tão benéfico, tranquilizante e sublime? Porque a Lua é um objeto da intuição, mas jamais do querer:
"As estrelas, não as desejamos,
Alegramo-nos com o seu esplendor" (Goethe).
Ademais, a Lua é SUBLIME, isto é, gera uma disposição elevada, porque, sem referência alguma a nós, eternamente alheia à atividade na Terra, gira em torno desta e tudo vê, porém não toma parte em nada. Quando da sua visão, portanto, a vontade com sua perene carência desaparece da consciência, e permite que esta seja algo que conhece puramente. Talvez aí também se mescle um sentimento de que compartilhamos essa visão com milhões de pessoas, cuja diferença individual ali extingue-se, de tal forma que nessa contemplação somos um; o que igualmente eleva a impressão do sublime. Esta, por fim, é também fomentada pelo fato de a Lua brilhar sem aquecer; nisto decerto residindo o motivo pelo qual foi denominada casta e identificada a Diana. Como consequência dessa impressão inteiramente benéfica sobre o nosso ânimo, a Lua torna-se aos poucos a nossa amiga do peito, coisa que o Sol, ao contrário, nunca será, pois, igual a um benfeitor exuberante, não somos capazes de olhá-lo na cara.

(Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação)

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Vontade cega

Com frequência não sabemos o que desejamos ou o que tememos. Podemos por anos a fio nutrir um desejo sem admiti-lo e nem sequer deixá-lo aparecer na clara consciência porque o intelecto nada deve saber acerca dele; pois a boa opinião que temos sobre nós mesmos sofreria um abalo: no entanto, se o desejo é satisfeito, sentimos com alegria e não sem uma certa vergonha que de fato era isso o que desejávamos: por exemplo, a morte de um parente próximo do qual somos herdeiros. Às vezes, não sabemos o que realmente tememos já que nos falta coragem de trazê-lo à clara consciência. De fato, com frequência estamos completamente enganados sobre o real motivo que nos leva a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, até que finalmente um acaso revela-nos o mistério e reconhecemos que o real motivo não era o que tomávamos como tal, mas um outro que éramos incapazes de admitir visto que não corresponde de modo algum à boa opinião que temos de nós mesmos. Por exemplo, deixamos de fazer algo por razões puramente morais, pelo menos assim acreditamos; mas depois notamos que foi o puro medo o que nos deteve, pois fazemos tal coisa assim que qualquer perigo é removido. Em determinados casos isso pode ir tão longe que uma pessoa não suspeita qual seja o motivo propriamente dito de sua ação, sim, não considera a si mesma como capaz de ser movida por um semelhante motivo: todavia, é justamente esse o real motivo de sua ação.

(Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação)

sábado, 3 de março de 2018

Viver é perigoso...

Viver é muito perigoso... Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.

(João Guimarães Rosa, Grande sertão veredas)

sábado, 24 de fevereiro de 2018

As benevolentes

Os cadáveres empilhavam-se em uma esplanada, em pequenos montes desordenados, espalhados aqui e ali. Um forte zumbido, persistente, dominava o ambiente: milhares de moscas gordas e azuis voejavam sobre corpos, poças de sangue, matérias fecais. Minhas botas grudavam no chão. Os mortos já estavam inchando, contemplei sua pele verde e amarelada, os rostos disformes, como os de um homem com os olhos pisados. O cheiro era repulsivo; e aquele cheiro, eu sabia, era o início e o fim de tudo, a própria significação da nossa existência. Esse pensamento me revirava o estômago. Pequenos grupos de soldados da Wehrmacht munidos de máscaras de gás tentavam desfazer as pilhas para alinhar os corpos; um deles puxara um braço, que se soltou e ficou em sua mão; ele o atirou com um gesto cansado em cima de outro monte. "Há mais de mil", disse-me o oficial da Abwehr, quase murmurando. Todos os ucranianos e poloneses que eles mantinham aprisionados desde a invasão. Encontramos mulheres, até mesmo crianças. Eu queria fechar os olhos, ou tapá-los com as mãos, e ao mesmo tempo queria olhar, olhar tudo até me embriagar e tentar compreender pelo olhar aquela coisa incompreensível, ali, diante de mim, aquele vazio para o pensamento humano. Desamparado, voltei-me para o oficial da Abwehr: "Leu Platão?" Ele me fitou, pasmo: "Quê?"  "Não, nada." Dei meia volta e saí dali.

(Jonathan Littell, As benevolentes

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Fundamentação prática

Com efeito, o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados. Já aludi a isto há pouco. Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a sua ação e, então, se acalmam; e isto é de fato o mais importante. Para começar a agir, é preciso, de antemão, estar de todo tranquilo, não conservando quaisquer dúvidas. E como é que eu, por exemplo, me tranquilizarei? Onde estão as minhas causas primeiras, em que me apoie? Onde estão os fundamentos? Onde irei buscá-los? Faço exercício mental e, por conseguinte, em mim, cada causa primeira arrasta imediatamente atrás de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito. Tal é, de fato, a essência de toda consciência, do próprio ato de pensar. E assim chegamos de novo às leis da natureza. E qual é, afinal, o resultado? Exatamente o mesmo. Lembrai-vos: ainda há pouco falei de vingança. (Provavelmente não atentastes nisso.) Já foi dito: o homem se vinga porque acredita que é justo. Quer dizer que ele encontrou a causa primeira, o fundamento: a justiça. Isto é, como ele está tranquilizado por todos os lados, vinga-se calmamente e com êxito, convicto de que pratica uma ação honesta e justa.

(Fiódor Dostoiévski, Memórias de subsolo)

sábado, 17 de fevereiro de 2018

A respeito da Verdade

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita da sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.

Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.

Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um deles me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.

Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.

(Fernando Pessoa, Livro do desassossego)

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Réquiem

O crucificado planeta Terra,
acaso encontrasse uma voz
e um senso de ironia,
poderia muito bem falar
do nosso abuso contra ele,
"Perdoai-os, Pai,
Não sabem o que fazem."

A ironia seria
que sabemos
o que estamos fazendo.

Quando o último ente vivo
tiver morrido por causa de nós,
como seria poético
se a Terra pudesse dizer,
numa voz que se elevasse
talvez
do fundo
do Grand Canyon,
"Acabou."
As pessoas não gostavam daqui.

(Kurt Vonnegut, Um homem sem pátria)

sábado, 9 de dezembro de 2017

Conclusões de Aninha

Estavam ali parados, marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavras.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
e não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

(Cora Coralina)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Teoria política

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a por ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
- Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

(Machado de Assis, O dicionário)

Elogio da vaidade

A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe a renda, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.

(Machado de Assis, Elogio da vaidade)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Nota mental

É possível morrer de tédio, fisicamente. E os remédios estão ficando cada vez mais raros...

(Eu mesmo)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Brechtiana

Primeiro,
Eles usurparam a matemática,
A medicina, a arquitetura,
A filosofia, a religiosidade, a arte,
Dizendo tê-los criado
À sua imagem e semelhança.

Depois,
Eles separaram faraós e pirâmides
Do contexto africano,
Pois africanos não seriam capazes
De tanta inventiva e tanto avanço.

Não satisfeitos, disseram
Que nossos ancestrais tinham vindo de longe,
De uma Ásia estranha,
Para invadir a África,
Desalojar os autóctones,
Bosquimanos e hotentotes.

E escreveram a História ao seu modo.
Chamando nações de “tribos”,
Reis de “régulos”,
Línguas de “dialetos”.

Aí,
Lançaram a culpa da escravidão
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta.

Então,
Reservaram para nós
Os lugares mais sórdidos,
As ocupações mais degradantes,
Os papéis mais sujos.

E nos disseram:
- Riam! Dancem! Toquem!
Cantem! Corram! Joguem!
E nós rimos, dançamos, tocamos
Cantamos, corremos, jogamos.
Agora, chega!

(Nei Lopes)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Manifestações da cultura

É um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as criaturas, e de obrigá-las a prosseguir vivendo. A um algema-o o prazer socrático do conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio a ferida eterna da existência, a outro enreda-o, agitando sedutoramente diante de seus olhos, o véu da beleza da arte, àqueloutro, por sua vez, o consolo metafísico de que, sob o turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna; para não falar das ilusões mais ordinárias e quase mais fortes ainda, que a vontade mantém prontas a cada instante. Esses três graus de ilusão estão reservados em geral tão apenas às naturezas mais nobremente dotadas, que sentem, em geral com desprazer mais profundo, o fardo e o peso da existência, e que, através de estimulantes escolhidos, são enganadas por si mesmas. Desses estimulantes compõe-se tudo o que chamamos cultura: conforme a proporção das mesclas, teremos uma cultura preferencialmente socrática ou artística ou trágica; ou se se deseja permitir exemplificações históricas: há ou uma cultura alexandrina, ou então helênica, ou budista.

(Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia)

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Ao amigo Heinrich

O que chamam verdade é um erro insuficientemente vivido, ainda não esvaziado, mas que não demorará a envelhecer, um erro novo, e que espera comprometer sua novidade.

(Emil Cioran)

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Extremismos febris

O coletivo casuísta que tanto condenas
Da convenção é tão passivo
Quanto és do ceticismo.

Cartomancias não me cansam
Como faz a tua ciência barata
Prepotente e transitória.

Tua contramarcha convicta
É tão conjectura quanto senso comum:
Igualmente inerte.

Minha censura ao comodismo
Difere clara da tua
Que de contundente, recua.

Na circunstância do desconforto
Há pouca força para refutar.
A caquexia sobrepõe o senso crítico.

(Letícia Palazzo, brilhantemente)

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Cântico negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos, 
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

(José Régio, Poemas de Deus e do Diabo)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cascata

A criança sabe que a boneca não é real, e trata-a como real, até chorá-la e se desgostar quando se parte. A arte da criança é a de irrealizar. Bendita essa idade errada da vida, quando se nega a vida por não haver sexo, quando se nega a realidade por brincar, tomando por reais a coisas que o não são!

Que eu seja volvido criança e o fique sempre, sem que importem os valores que os homens dão às coisas nem as relações que os homens estabelecem entre elas. Eu, quando era pequeno, punha muitas vezes os soldados de chumbo de pernas para o ar... E há argumento algum, com jeito lógico para convencer, que me prove que os soldados reais não devem andar de cabeça para baixo?

A criança não dá mais valor ao ouro do que ao vidro. E na verdade, o ouro vale mais? A criança acha obscuramente absurdos as paixões, as raivas, os receios que vê esculpidos em gestos adultos. E não são na verdade absurdos e vãos todos os nossos receios, e todos os nossos ódios, e todos os nossos amores?

Ó divina e absurda intuição infantil! Visão verdadeira das coisas, que nós vestimos de convenções no mais nu vê-las, que nós embrumamos de ideias nossas no mais direto olhá-las!

Será Deus uma criança muito grande? O universo inteiro não parece uma brincadeira, uma partida de criança travessa?

Lancei-vos, rindo, esta ideia ao ar, e vede como ao vê-la distante de mim de repente vejo o que de horrorosa ela é (Quem sabe se ela não contém a verdade?). E ela cai e quebra-se-me aos pés, em pó de horror e estilhaços de mistério...

Acordo para saber que existo...

Um grande tédio incerto gorgoleja erradamente fresco ao ouvido, pelas cascatas, cortiçada abaixo, lá no fundo estúpido do jardim.

(Fernando Pessoa, Livro do desassossego)

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Não olho para as coisas...

Não olho para as coisas.
Definitivamente não olho para as coisas.
Quando olho para as coisas,
Olham para as coisas por meio dos meus olhos.

Meus óculos são grossos!
Se vejo injustiça, é um mártir qualquer que a chora.
Se contemplo a beleza, é um esteta que a examina.
Se observo um fenômeno, é um cientista que o explica.
Se procuro liberdade, é um político que aponta a direção.

Minhas palavras são externamente articuladas!
Digo "Estou feliz!" porque me disseram o que é felicidade.
Digo "Tenho pena!" por ter lido sobre a empatia.
Digo "Adeus!" seguindo regras de sociabilidade.
Digo "Te amo!" em resposta ao amor que recebo.

Sempre os outros...
Não sou a soma de experiências.
Sou, antes, anulado por elas.

Eu, substrato vazio de conteúdo,
Receptáculo universal de alteridades.
Eu, amontoado enciclopédico de argumentos,
Disposição organizada de alheios.

Eis o paradoxo desconcertante:
O que tenho de original me é emprestado de fora,
E minha introspecção se dá em terceira pessoa.
Tirando isso, eu sou.

(Eu mesmo)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Atuaram...

Atuaram,
Insetos que são aves a gracejar,
Gatos que são porcos a chafurdar,
Flores que são estrume a não cheirar.

Atuam,
Lesmas a voar,
Diamantes a não brilhar
E até mesmo folhas a não cair.

Atua,
A fumaça que é calma,
A doença que é a alma,
A solidão que é carinho.

Atuo eu, atuas tu, atuam todos.

E que péssimos atores somos nós.

(Meu amigo Eric, com a ajuda do Berim, o CD)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Consolo na praia

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

(Carlos Drummond de Andrade)