sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Réquiem

O crucificado planeta Terra,
acaso encontrasse uma voz
e um senso de ironia,
poderia muito bem falar
do nosso abuso contra ele,
"Perdoai-os, Pai,
Não sabem o que fazem."

A ironia seria
que sabemos
o que estamos fazendo.

Quando o último ente vivo
tiver morrido por causa de nós,
como seria poético
se a Terra pudesse dizer,
numa voz que se elevasse
talvez
do fundo
do Grand Canyon,
"Acabou."
As pessoas não gostavam daqui.

(Kurt Vonnegut, Um homem sem pátria)

sábado, 9 de dezembro de 2017

Conclusões de Aninha

Estavam ali parados, marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.

O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavras.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
e não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?

Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.

(Cora Coralina)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Teoria política

Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a por ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
- Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.

(Machado de Assis, O dicionário)

Elogio da vaidade

A antífona continua, a música não cessa; mas a matrona suplantou Jesus, na atenção dos ouvintes. Ei-la que dobra as curvas, abre o livro, compõe a renda, murmura a oração, acomoda o leque. Traz no coração duas flores, a fé e eu; a celeste colheu-a no catecismo, que lhe deram aos dez anos; a terrestre colheu-a no espelho, que lhe deram aos oito; são os seus dois Testamentos; e eu sou o mais antigo.

(Machado de Assis, Elogio da vaidade)

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Nota mental

É possível morrer de tédio, fisicamente. E os remédios estão ficando cada vez mais raros...

(Eu mesmo)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Brechtiana

Primeiro,
Eles usurparam a matemática,
A medicina, a arquitetura,
A filosofia, a religiosidade, a arte,
Dizendo tê-los criado
À sua imagem e semelhança.

Depois,
Eles separaram faraós e pirâmides
Do contexto africano,
Pois africanos não seriam capazes
De tanta inventiva e tanto avanço.

Não satisfeitos, disseram
Que nossos ancestrais tinham vindo de longe,
De uma Ásia estranha,
Para invadir a África,
Desalojar os autóctones,
Bosquimanos e hotentotes.

E escreveram a História ao seu modo.
Chamando nações de “tribos”,
Reis de “régulos”,
Línguas de “dialetos”.

Aí,
Lançaram a culpa da escravidão
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta.

Então,
Reservaram para nós
Os lugares mais sórdidos,
As ocupações mais degradantes,
Os papéis mais sujos.

E nos disseram:
- Riam! Dancem! Toquem!
Cantem! Corram! Joguem!
E nós rimos, dançamos, tocamos
Cantamos, corremos, jogamos.
Agora, chega!

(Nei Lopes)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Manifestações da cultura

É um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as criaturas, e de obrigá-las a prosseguir vivendo. A um algema-o o prazer socrático do conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio a ferida eterna da existência, a outro enreda-o, agitando sedutoramente diante de seus olhos, o véu da beleza da arte, àqueloutro, por sua vez, o consolo metafísico de que, sob o turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna; para não falar das ilusões mais ordinárias e quase mais fortes ainda, que a vontade mantém prontas a cada instante. Esses três graus de ilusão estão reservados em geral tão apenas às naturezas mais nobremente dotadas, que sentem, em geral com desprazer mais profundo, o fardo e o peso da existência, e que, através de estimulantes escolhidos, são enganadas por si mesmas. Desses estimulantes compõe-se tudo o que chamamos cultura: conforme a proporção das mesclas, teremos uma cultura preferencialmente socrática ou artística ou trágica; ou se se deseja permitir exemplificações históricas: há ou uma cultura alexandrina, ou então helênica, ou budista.

(Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia)