sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Brechtiana

Primeiro,
Eles usurparam a matemática,
A medicina, a arquitetura,
A filosofia, a religiosidade, a arte,
Dizendo tê-los criado
À sua imagem e semelhança.

Depois,
Eles separaram faraós e pirâmides
Do contexto africano,
Pois africanos não seriam capazes
De tanta inventiva e tanto avanço.

Não satisfeitos, disseram
Que nossos ancestrais tinham vindo de longe,
De uma Ásia estranha,
Para invadir a África,
Desalojar os autóctones,
Bosquimanos e hotentotes.

E escreveram a História ao seu modo.
Chamando nações de “tribos”,
Reis de “régulos”,
Línguas de “dialetos”.

Aí,
Lançaram a culpa da escravidão
Na ambição das próprias vítimas
E debitaram o racismo
Na nossa pobre conta.

Então,
Reservaram para nós
Os lugares mais sórdidos,
As ocupações mais degradantes,
Os papéis mais sujos.

E nos disseram:
- Riam! Dancem! Toquem!
Cantem! Corram! Joguem!
E nós rimos, dançamos, tocamos
Cantamos, corremos, jogamos.
Agora, chega!

(Nei Lopes)

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Manifestações da cultura

É um fenômeno eterno: a vontade ávida sempre encontra um meio, através de uma ilusão distendida sobre as coisas, de prender à vida as criaturas, e de obrigá-las a prosseguir vivendo. A um algema-o o prazer socrático do conhecer e a ilusão de poder curar por seu intermédio a ferida eterna da existência, a outro enreda-o, agitando sedutoramente diante de seus olhos, o véu da beleza da arte, àqueloutro, por sua vez, o consolo metafísico de que, sob o turbilhão dos fenômenos, continua fluindo a vida eterna; para não falar das ilusões mais ordinárias e quase mais fortes ainda, que a vontade mantém prontas a cada instante. Esses três graus de ilusão estão reservados em geral tão apenas às naturezas mais nobremente dotadas, que sentem, em geral com desprazer mais profundo, o fardo e o peso da existência, e que, através de estimulantes escolhidos, são enganadas por si mesmas. Desses estimulantes compõe-se tudo o que chamamos cultura: conforme a proporção das mesclas, teremos uma cultura preferencialmente socrática ou artística ou trágica; ou se se deseja permitir exemplificações históricas: há ou uma cultura alexandrina, ou então helênica, ou budista.

(Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia)